domingo, 27 de janeiro de 2008

As Duas Mãos de Deus
Excertos de “O Meu Cristo Partido” de Ramón Cué
.....................
Não podemos dar um passo na vida sem tropeçar na mão direita de Cristo. Segue-nos por todos os caminhos. Avançamos por uma paisagem fantástica e invisível, em que a mão de Deus se multiplicou até ao infinito, acariciando-nos, levantando-nos, perdoando-nos. E é luz, carícia, relâmpago, freio, pranto, fogo, sorriso, perdão, paciência...
.....................
A mão direita é clara, aberta, transparente, luminosa. Dá a cara. Entra directa. Não se disfarça. Actua de dia. Em pleno sol. Fala com voz normal. É de todas as horas.
.....................
A mão esquerda procura atalhos, serve-se de rodeios; é calculo e diplomacia, não tem pressa; cola-se à luva e à camuflagem, se necessário. Actua à distância. Disfarça a voz. Esconde-se na sombra ou espera pela noite. Passa a gritar como um ciclone, ou em silêncio como um punhal. Contudo, ainda que esquerda, não é maquiavélica, nem traidora, porque a move o Amor.

Para cada alma tem Deus duas mãos. Porém emprega-as de diverso modo em cada caso porque todas as almas são diferentes. E a conquista de cada uma é um jogo pessoal de Deus e dela. Que não volta a repetir-se, porque jamais se pode repetir exactamente uma alma e a sua história.

Há almas que se deixam prender pela mão direita. Noutras, alternam esquerda e direita, as duas mãos divinas. Há almas nas quais, fracassada a direita, Deus tem de empregar a fundo a mão esquerda.

Com a direita, como a pombas brancas e a ovelhas dóceis, Deus conquistou João Evangelista, Francisco de Assis, João da Cruz, Francisco Xavier, as duas Teresas – a espanhola e a francesa. Não é que a mão direita elimine a luta, não, nem a dor, nem a renúncia. Mas é cara a cara, em pleno sol.

Para conquistar Pedro e Paulo, Madalena, Agostinho ou Inácio de Loyola, Deus teve que empregar a mão esquerda. Diante da mão direita debatem-se, revoltam-se, obstinam-se. Entra então em jogo a mão esquerda. Mas na sombra, sem dar a cara, buscando um disfarce. A mão de Deus – o seu Amor – inventa uma engenhosa e divina metamorfose e transforma-se em raio, em bala de canhão, em dois olhos com lágrimas ou num galo que canta de noite.

O relâmpago cega Paulo a quem não conseguiram iluminar os olhos claríssimos e agonizantes de Estêvão no martírio que quis ser mão direita de Deus. O relâmpago cega-o, sepultando-o na noite, para que nessas trevas brilhe a luz nova de Damasco. A bala de um canhão francês leva a perna a Inácio de Loyola que tinha suportado e repelido, sem jamais capitular, todos os suaves ataques da mão direita de Deus, conseguindo a sua rendição.

O canto de um galo que acutila a noite, tem mais eloquência para Pedro do que as palavras directas e transparentes do Mestre. Então entende tudo e desata a chorar.

E a rebeldia intelectual de Agostinho, que flutuou sempre de cabeça erguida sobre as procelosas e ocânicas tormentas dos seus pensamentos, acaba por perecer afogada nos dois mansos arroios de lágrimas que rolam pelas faces de sua mãe, Mónica.
...............
E a murros bruscos e desalmados, afastamos continuamente da nossa beira essa mão direita de Deus que, suave, calada, insinuante, dorida e paternal, tratava, adejando, de ser carícia, sorriso, vôo, esperança, perfume, bálsamo e beijo na nossa vida.
...............
Diante da mão esquerda de Deus que, quando actua, irrompe quase sempre inesperada e implacável na nossa existência, a primeira reacção é um grito de protesto, de rebeldia, de desespero.
......................
Julgamos Deus como único responsável desta dor que, por ser tão terrivelmente profunda, não pode vir das criaturas e, logicamente, enfrentamos Deus como culpado. E gritamos-Lhe. Perguntamos-Lhe: Porquê? Porquê? Exigimos. Intimamo-Lo. Desafiamo-Lo. Condenamo-Lo. É injusto, cruel, desumano. Não tem coração de pai. Pai? Se fosse pai, não me trataria assim! E revolvemo-nos, cercados e impotentes, destroçados e aniquilados, contra a terrível mão esquerda de Deus. Gritamos. Protestamos. Revoltamo-nos. Depois ficamos sós.... Vêm as primeiras lágrimas nervosas e escaldantes. E sem o notarmos, desabrocha a primeira oração. Tornamos a protestar. Contra Deus. E contra a nossa primeira oração. Vem o cansaço. Outra vez sós... As lágrimas já são mais serenas. Já rezamos sem protestar Temos vontade de beijar algo... o quê? Sim. Isso. Já sabemos: um crucifixo. E com um beijo dizemos a Deus que está bem tudo quanto Ele determinar.
Terrível, violenta, dura, implacável, mas bendita mão esquerda de Deus! É o beijo que mais custa a dar. Mas é o mais saboroso de todos os beijos! O mais difícil é dar o primeiro. Depois ... já não se pode viver sem beijar a mão esquerda de Deus.

...................
E é este o disfarce primitivo e verdadeiro da tua mão esquerda: a Cruz!
...................
Digo-te em nome de todos, porque todos nós somos corajosos para to pedir a partir de agora:
- Senhor, se não basta, para nos salvar, a ternura da tua mão direita, desprega a esquerda e disfarça-a do que quiseres – fracasso, calúnia, ruína, acidente, cancro, morte ... Que sejamos filhos da tua mão. Da tua direita ou da tua esquerda.


Dá-me a tua mão, ainda que seja a esquerda! Tanto faz, se for a tua. Se segurar a tua mão, não receio fugir. Se segurares a minha, não receio perder-me. Dá-me a tua mão, ainda que seja a esquerda!

Porque não lhe beijas a mão esquerda, antes de te deitares esta noite? E aconteça o que acontecer!
Anda! Atreve-te!

Abraço da Golfer

(e um beijo na mão esquerda de Deus)

Sem comentários: